terça-feira, 4 de janeiro de 2011



O Velho viúvo de barbas encardidas e cabelos desgrenhados passava boa parte de suas 24 horas diárias mantendo-se ocupado em sua pequena loja de aves, rodeado por gaiolas de todos os tamanhos e pássaros das mais diversas espécies.
Desde que sua amada esposa falecera, três anos atrás, uma hora após dar a luz ao seu  filho Valentim, o dono da loja de aves vinha, aos poucos, ficando cada vez mais amargo e vazio. Era um homem seco, tornara-se oco por dentro, livre de sentimentos nobres.
Naquela manhã de quinta-feira, ele parecia ainda mais ranzinza, ralhando impaciente enquanto trocava a água e a comida das gaiolas. Parou de repor o alimento das aves quando ouviu a sineta que ficava presa à porta da loja tocar, anunciando a chegada de um cliente.
Uma jovem senhora de cabelos descuidados na faixa dos quarenta anos olhava encantada para todos os lados, admirando os espécimes que aquele senhor colecionava em sua loja. Seus olhos percorriam cada gaiola e viveiro que ocupavam as prateleiras e boa parte do chão daquele local, como se procurasse algo em especial. Ao avistar o dono da loja atrás de um pequeno balcão de cerejeira, resolveu dirigir-se a ele.
- Bom dia, senhor.
- Bom dia. O que deseja? – perguntou ele secamente.
- Procuro um Pintassilgo. Tenho um macho e gostaria de comprar uma fêmea para fazer-lhe companhia.
- A senhora tem sorte. Tenho exatamente o que precisa – disse o velho enquanto arrastava-se para os fundos da loja.
Pegou uma escada, posicionou-a no local desejado e, com uma certa dificuldade, começou a subir os degraus. Com a ajuda de uma vara com um prego em sua ponta, alcançou a gaiola feita com talas de bambu onde se encontrava a bela fêmea de pintassilgo e a trouxe para baixo.
Em seguida, voltou para frente da loja, onde sua cliente o aguardava.
- Aqui está. Meu único exemplar de Pintassilgo. Uma bela fêmea.

A jovem senhora segurou a pequena gaiola nas mãos e pôs-se a observar o pássaro que estava dentro dela. A fêmea de Pintassilgo estava agitada. Piava nervosa enquanto batia suas asas mescladas de amarelo e preto tentando, em vão, levantar vôo em seu pequeno cativeiro.
- Ela me parece um pouco arisca – comentou a cliente.
- A vida nos torna ariscos – retrucou o velho enquanto dava as costas para a mulher e voltava para o balcão da loja. Ela pousou a gaiola no chão da loja e o seguiu, sentindo-se um pouco ofendida pela grosseria dele.
- É... Culpar a vida pelas nossas amarguras é bem mais fácil que assumir nossa própria culpa – respondeu ela, fazendo os olhos do homem se estreitarem.
- Não me venha com frases feitas, pois você não sabe nada sobre minha maldita vida – retrucou o velho mostrando-se extremamente irritado com tamanho atrevimento.
- E o senhor acha que é o único no mundo que tem dissabores? Ora bolas, poupe-me dessa baboseira – replicou ela, irritada com o rumo que aquela conversa tinha tomado.
 – vai levar o pintassilgo ou não? – perguntou o velho bruscamente, querendo se ver livre daquela infeliz o mais rápido possível.
- e quanto vai me custar livrar esta ave de seu mau-humor e de sua ridícula autopiedade?
Naquele momento, a discussão dos dois foi interrompida pelo som de algo que parecia ter se despedaçado. Era o som de uma gaiola espatifando-se no chão. O velho dono da loja percorreu os olhos por todo o lugar, de alto a baixo, tentando localizar qual de suas gaiolas tinha despencado.
De repente, um choro agudo e infantil foi ouvido. A cliente imediatamente localizou a fonte do pranto e correu ao encontro de um lindo garotinho loiro de aproximadamente três anos de idade que se encontrava caído em cima da gaiola que, até poucos instantes atrás, tinha sido a prisão da fêmea de pintassilgo.
A mulher levantou o menino e o colocou em seus braços, embalando-o de forma carinhosa, na intenção de fazê-lo parar de chorar. Os joelhos do pequenino estavam ralados e ele apontava para eles enquanto suas lágrimas caiam daqueles lindos olhos azuis, como se quisesse dizer aquela mulher que estava sentindo muita dor.

- Eu sei meu querido. Está doendo não é? Mas vai passar... Vai passar – dizia enquanto o balançava em seu colo.
A mulher não pôde deixar de perceber os traços peculiares no rosto do garoto. Não teve dúvidas, era um garoto especial – tinha síndrome de Down.
- Maldição – gritou o velho assim que viu o menino choramingando nos braços da mulher. – Veja só o que você fez seu imprestável. Há uma semana que não consigo vender nenhum dos meus pássaros. Justamente no dia em que isto parecia que iria mudar, você me estraga tudo – brigou ao perceber que o pintassilgo tinha fugido após o garoto tropeçar e quebrar a gaiola.

- Não seja estúpido. Ele é só uma criança – revoltou-se a mulher enquanto o menino escondia o rosto em seus ombros.
- Um fardo. Isso é o que ele realmente é – esbravejou o pai do garoto enquanto recolhia as talas de bambu da gaiola quebrada e as jogava na rua.
 Naquele mesmo instante, a mulher viu, através dos vidros da porta, quando três garotos risonhos recolheram os restos da gaiola que o velho tinha jogado fora e desapareceram dali em seguida, festejando. Ela estranhou a alegria imensa que eles tinham feito por causa de míseros pedaços quebrados de bambu. Porém, logo voltou seus olhos para o interior da loja, onde o velho continuava se lastimando e murmurando o quanto aquele pivete demente era imprestável.
- Judite – gritou ele, furioso. – Judite, venha aqui agora mesmo.
Imediatamente, uma garota com pouco mais de dezesseis anos, magrinha, com a testa pingando de suor – parecia que estava cuidando dos afazeres domésticos - veio dos fundos da loja e apresentou-se. Parecia assustada.
-Sim papai, pode falar.
- O que você estava fazendo? – perguntou o velho.
- Encerando o chão da sala – respondeu ela apontando para os fundos da loja. Sim, nos fundos do pequeno comércio daquele homem ficava a sua casa.
- Eu já falei para você que não tirasse os olhos desse aí – disse, apontando para o menino loiro que tinha o rosto afundado nos ombros da jovem senhora. - Já disse mil vezes que não quero este demente perambulando pela loja – gritou o homem. Estava fora de si.
Judite então compreendeu o que estava acontecendo ali. Rapidamente, dirigiu-se a mulher que segurava seu irmão enquanto explicava o que tinha acontecido.
- eu deixei o Valentim dormindo e fui cuidar de limpar a casa. Não percebi que ele tinha acordado. Desculpe-me papai – desculpou-se ela enquanto tirava o menino dos braços da mulher.
- O que diabos está acontecendo aqui? – perguntou a cliente, fora de si. – O senhor não se envergonha de tratar seu próprio filho desta maneira? Ele é só uma criança – indignou-se ela enquanto o garoto continuava chorando nos braços da irmã.

- Leve o garoto daqui imediatamente – ralhou o velho, ignorando a fala da mulher – e faça-o se calar. Detesto esta choradeira.
- sim papai – respondeu Judite.
- Os joelhos do menino estão machucados, seu verme. Como quer que ele se cale?
- ponha-se daqui para fora, sua metida de uma figa. Deixe que dos meus filhos cuido eu.
- Tudo bem, senhora. Sei como cuidar do Valentim. Obrigada por se preocupar – disse uma tímida e cabisbaixa Judite.
- Tem certeza de que não precisa de ajuda, minha querida? – perguntou a mulher – você me parece tão jovem para cuidar de uma criança.
                - Será que você pode cair fora da minha loja ou vou ser obrigado a usar de força bruta? – bradou o velho. Sua paciência esgotada.
                - É bem a sua cara usar de força bruta, seu estúpido – respondeu a mulher. Em seguida, deu um beijo nos cabelos de Valentim e alisou o ombro de Judite. Sem que o velho pudesse notar, colocou um cartão dentro do avental que a adolescente vestia e sussurrou em seus ouvidos:
                - Me ligue se precisar de ajuda.
                Judite assentiu positivamente com a cabeça e retribuiu aquele gesto com um tímido, porém encantador sorriso. A mulher girou em seus calcanhares e pôs-se para fora dali.
Já do lado de fora, sentou-se em um banco de praça que ficava em frente à loja de pássaros e deu um longo e frustrado suspiro. Começou a se perguntar o que tinha acontecido na vida daquele velho para que ele tivesse ficado tão estúpido e sem coração. “onde já se viu tratar seu próprio filho, um garotinho de apenas três anos de idade, com tamanho desdém?” lamentava-se ela para si mesma.

Então começou a perceber que, dentro daquela loja, não eram só os pássaros que viviam em gaiolas. As prisões daquele lugar transcendiam os objetos feitos de bambu.
O velho tinha encarcerado seus sentimentos em uma masmorra de gelo; tinha condenado seus filhos a viver sem amor, sem afeto. As feições temerosas da própria Judite já mostravam como ela enxergava o pai: um carcereiro. O homem cruel a quem ela deveria apenas obedecer. Sempre, incondicionalmente.

E Valentim? O garoto especial. Tão pequeno e já fadado ao cárcere emocional que seu pai impunha. A mulher desejou do fundo do seu coração que aquele menino um dia pudesse ter a mesma sorte da pintassilgo fêmea que ele, sem querer, tinha libertado. Esperava que um dia ele também pudesse ter o imenso prazer de bater suas asas e fugir para bem longe de sua prisão.
 “Como aquele velho se tornou tão ranzinza?” Ela não cansava de se perguntar. De repente, sua atenção foi desviada por gritos esfuziantes que se aproximavam dela. Lá estavam os três garotos que tinham recolhido as talas de bambu da gaiola quebrada. Ao perceber o que faziam, deu-se conta do motivo daquela felicidade imensa que eles demonstraram ao apanharem os restos da gaiola minutos atrás.
Eles corriam de um lado para o outro, empinando lindas pipas multicoloridas. Seus cabelos esvoaçavam ao sabor do vento enquanto a brisa morna de verão levava suas pipas para o alto... Cada vez mais para o alto... Para os céus.

A mulher olhou para as pipas que os garotos empinavam. Elas tinham sido feitas com as mesmas talas de bambu que um dia aprisionaram o pintassilgo. Por um bom tempo elas significaram prisão, cárcere, solidão, infelicidade. Agora, unidas com papel de seda e linha, pairavam graciosas pelos céus daquela cidade. Simbolizavam liberdade.
Então ela sentiu um louco desejo de ser uma libertadora. Sentiu vontade de arrombar as portas da loja de pássaros, quebrar todas as gaiolas, libertar os animais que ali estavam aprisionados. Seu desejo cresceu, e sentiu vontade de trazer liberdade para Valentim, para Judite... Para o velho ranzinza.  Por fim percebeu que desejava liberdade para si mesma. Não sabia por onde começar, não sabia direito o que fazer. Desejou ser pipa... Queria unir-se a papel de seda e linha... Ser livre...
De repente, ouviu um som que já lhe era muito familiar. Olhou para uma imensa arvore que ladeava aquele banco de praça no qual estava sentada. Ali estava a pintassilgo fêmea, cantarolando lindamente... Festejando sua liberdade... Entoando um canto de gratidão ao pequeno Valentim.

A jovem senhora levantou-se do banco e deu um profundo suspiro. Daquela vez, era um suspiro de felicidade. Finalmente sabia por onde começar. Em sua casa tinha um pintassilgo aprisionado esperando loucamente por sua liberdade. Então deu uma última olhada para a loja de aves e um sorriso lhe escapou pelo canto dos lábios. Era como se aquele sorriso fosse uma promessa: “Não desistirei de vocês.” Seguiu em frente, caminhando pelas ruas daquela cidade com um pensamento em mente: A diferença está em como você vai usar as talas de bambu.

Thiago Almeida



               


4 comentários:

  1. Lindo, fofo, maravilhoso.
    Adoro você amigo!

    Seu amigo Marcos.

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  2. Conhecer Valentim,foi maravilhoso,aquele menino que povoava teus sonhos,agora aqui na minha frente,quase que pude tocá-lo!
    Você mais uma vez me surpreende com a sua escrita fácil e envolvente,que possas encontrar muitos espaços em branco e neles escrever a vida de tantos Valentins,pássaros,pipas e pessoas que se importam umas com as outras,torná-las humanas é o teu papel!
    Siga em frente,sempre estarei por perto,para desfrutar desse meio,que já chegou me emocionando...
    Obrigado!

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  3. Que lindo! inaugurou o blog muito bem, rss. Parabéns. Ah! só faltou o seu nome no perfil "quem sou eu?", afinal você não precisa de talas de bambú para esconder seu talento e ficar anônimo, rss. Bjos

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Botem a boca no trombone!!!