CIRCO BRASIL
É engraçado ser humano. É engraçado ser chamado de racional quando nosso corpo sucumbe à irracionalidade furiosa do mundo material; e chega a ser cômico o nosso comportamento de palhaço diante do picadeiro infindável que se estende ao nosso redor.
E aqueles que se dizem donos deste mundo circense nos escolheram para atuar nele como artistas. É isso mesmo: somos os maiores artistas a pisar neste palco. E aqueles que nos fizeram assim, nos disseram para pintar a cara, pôr uma roupa colorida e uma bola vermelha no nariz, e foi assim que nos fizeram palhaços.
Feito isto, chamaram seus familiares e amigos, sentaram nas arquibancadas e começaram a se divertir enquanto nós, artistas, fazíamos o nosso papel: Divertir a burguesia e, com isto, fazer com que nossos superiores se sentissem felizes e realizados.
Nossos espetáculos tinham números novos quase que diariamente, e os donos do circo tratavam logo de divulgar o show:
“Hoje, imperdível! O palhaço João morre de fome junto com seus quatro filhos. Logo após, a palhacinha Marta, de apenas oito aninhos, vai vender drops no sinal para levar comida para casa; e para fechar o espetáculo com chave de ouro teremos a Troupe Circense Meninos de Rua, com o espetáculo: Ei, Dona Maria, me dê um prato de comida e uma roupinha velha que eu estou morrendo de fome e de frio.”
O resultado já era de se esperar: Arquibancadas lotadas, e os pagantes exigiam bis.
Não gostávamos de atuar. Desejávamos ardentemente o fim de tudo aquilo, tanto que fomos falar com os patrões que, para aliviar a barra, fizeram um trato conosco:
-A partir de hoje vocês serão profissionais.
E foi aí que legalizaram a profissão de palhaço. Pensamos:
“Que bom, agora que somos profissionais, tudo mudará”
E parecia que mudaria mesmo. Recebíamos uma ajudinha para comprar o gás de cozinha, e as crianças tornaram-se o nosso comércio particular, pois nossos patrões falaram que se elas fossem à escola, receberíamos uma tal de bolsa auxílio. A idéia foi tão boa que logo foi incluída como o ápice dos nossos espetáculos.
Assim vieram os shows seguintes: Palhaça Maria morre de sede no sertão nordestino; palhaços ambulantes pagam propina para poder trabalhar; bandidos sequestram dois bobos da corte; palhaço José é vítima de um assalto, acaba ferido e pode perder a perna por negligência médica.
Depois de tanto trabalho, ficamos cansados e novamente pensamos em abandonar tudo. Foi então que tivemos a notícia de que o circo mudaria de dono e que quem escolheria o novo comandante seríamos nós. Os candidatos a dono do circo começaram a aparecer. No princípio pareciam muito legais. Apertavam nossas mãos, colocavam nossos filhos nos braços, nos davam roupa, comida... Diziam que se os escolhêssemos, tudo mudaria, teríamos moradia, saúde e emprego. Nossos espetáculos mudariam pra melhor.
Foi então que começamos a convencer nossos amigos e familiares a votar naquele que nos prometia mais melhorias. Porém, quando escolhíamos, tudo voltava a ser como antes. Às vezes até piorava.
De quatro em quatro anos, escolhíamos um novo dono, e sempre aconteciam às mesmas coisas: choviam promessas, mas depois nada se concretizava. Foi aí que cansamos de escolher as pessoas erradas e resolvemos votar em um dos nossos. Escolhemos um “companheiro palhaço” como a gente.
Com o passar do tempo, começamos a perceber que nosso escolhido não estava conseguindo cumprir com as promessas feitas. Nos pediu paciência, falou que tudo melhoraria. Mas palhaço que tem fome não come promessas; palhaço que tem sede não bebe paciência, pois não dá pra ficar matando a sede na saliva.
E o nosso ex-palhaço, agora dono do circo, até tentou fazer com que deixássemos de ser artistas e pensou em nos dar outra profissão, mas logo vieram seus novos “companheiros” e falaram que ele não fizesse isto, que era melhor nos deixar como estávamos. Afinal, estávamos bem. Palhaço é profissão, bobo é quem ri.
Bobo é quem faz da morte um espetáculo; quem faz da fome seu sustento. Bobo é quem faz da sede o seu oásis e da felicidade alheia o seu lamento.
Bobo é quem consegue sentar nas arquibancadas do circo dos miseráveis e sorrir, deliciando-se com o espetáculo lamentável dos palhaços da vida.
Por fim, digo que bobo é quem está lendo esta crônica neste exato momento e não se identificou como sendo um palhaço. E você, que continua lendo e não consegue se identificar como sendo um dos nossos, vamos nos apresentar: Muito prazer. Somos palhaços. Mas pode nos chamar de povo brasileiro.
Prazer,sou brasileira!!
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